Tuesday, February 20, 2007

Rameau: Dardanus

Jean-Philippe Rameau (1683-1764)
Dardanus, tragédie lyrique en cinq actes er un prologue
Dardanus: John Mark Aisnley
Iphise: Véronique Gens
Teucer: Russel Smythe
Anténor: Laurent Naouri
Vénus: Mireille Delunsch
Isménor: Jean-Philippe Courtis
Une bergère (e outros): Magdalena Kozená
L'Amour (e outros): Françoise Masset
Un phrygien: Jean-Louis Bindi

Choeur des Musiciens du Louvre
Les Musiciens du Louvre
Marc Minkowski

463 476-2 - Archiv Produktion


ardanus estreou na Ópera de Paris, com libreto de Charles-Antoine Le Clerc de la Bruère, em novembro de 1739, durante o ápice da disputa entre lullistas (partidários conservadores das óperas de Jean-Baptiste Lully) e ramistas (os admiradores e apoiadores do estilo de Rameau). Seu sucesso foi pouco, após 26 apresentações, e a ópera recebeu críticas, inclusive sendo acusada de conter “música demais”, o que contribuiu para que sua primeira revisão, em 1744, tivesse várias passagens cortadas e simplificações de outras, servindo para dar maior coesão ao libreto. Mais tarde, em 1760, Rameau revisaria Dardanus pela segunda vez.
pesar de o libreto de 1739 apresentar várias deficiências notáveis, que podem confundir aqueles que o acompanham enquanto escutam a obra, como a adoção de um monstro marinho como ajuda providencial para dar desenrolar a trama, Marc Minkowski escolheu a primeira versão da ópera para a gravação em questão. A crítica à ópera, em sua época de estréia, quanto a seu excesso de música, é indicador de uma boa opção para uma época como a nossa em que a música se tornou plano de fundo para o nosso dia-a-dia, e em que o texto, outrora com importância intrínseca à música, ocupa um lugar menos privilegiado em nossas prioridades para apreciação musical. No entanto, independente de nossa atual deficiente relação para com a música, Minkowski viu maior potencial musical na primeira versão de Dardanus, uma vez que suas revisões tinham como objetivo tornar mais prazerosa a ida ao teatro.
oda a trama da ópera gira ao redor do sentimento que o herói Dardanus sente por Iphise, filha de Teucer, este inimigo de Dardanus, e que ela sente pelo herói, no entanto, ambos não sabem sobre a reciprocidade desse sentimento. Quando o casal descobre essa paixão entre eles, Iphise ainda enfrenta o dilema entre se entregar a Dardanus ou respeitar seu pai, tanto por este ter destinado sua mão a Antenor, como pela inimizade em relação a seu amado.
arc Minkowski fez um excelente trabalho com a orquestração rica e instrumentação colorida, típica de Rameau, ressaltando detalhes e elementos que poderiam facilmente ser encobertos por passagens mais energéticas. As dinâmicas também foram extremamente ressaltadas pelo regente francês, no entanto, sem apresentar extremos que fariam a obra ser menos coesa e perder sua unidade. Vale ressaltar que o barroco francês é muito diferente do italiano, a ponto de ambos, em suas épocas, serem considerados antíteses. Portanto, ao se aventurar nas óperas francesas do barroco é necessário se preparar pra não julgar essas obras do ponto de vista italiano, de Handel e Vivaldi. Enquanto estes são mais facilmente compreendidos em primeiras audições, Rameau precisa de maior atenção e de repetição para que se possa, a cada audição, conhecer novos detalhes e aproveitar mais o que suas obras têm a oferecer.
herói Dardanus é interpretado pelo tenor inglês John Mark Ainsley. Seu belo timbre e sua articulação em cada trecho poderiam ser chamados de diferencial nessa gravação, uma vez que Ainsley é extremamente competente, no entanto, isso seria uma injustiça para com os outros componentes envolvidos nessa Dardanus, uma vez que trata-se de uma gravação primorosa. Sua interpretação é tocante em “Lieux funestes” (início do quarto ato), ária em que Dardanus está na prisão lamentando-se pela falta de sua amada, emprestada da versão de 1754, que Minkowski achou indispensável para essa gravação, uma vez que foi considerada por ele como “a mais bela ária para contra-tenor já escrita”. E se Ainsley faz um excelente papel nesta aclamada triste ária, ele mantém o alto nível em momentos heróicos, como na arieta “Hâton-nous; courons à la gloire” (ato IV, cena III), seu brado belicoso quando está preste a enfrentar o monstro que está devastando as praias frígias.
soprano francesa Véronique Gens, especialista no repertório barroco, interpreta Iphise. Infelizmente, em Dardanus faltam trechos inspirados para seu papel, o que nos priva de apreciar todo potencial e bela voz da cantora, exceto no belíssimo dueto “Des biens que Vénus nous dispense” (ato V, cena III), em que Véronique tem acompanhamento de John Mark Ainsley, para cantarem as rejubilações de Iphise e Dardanus após as adversidades. É gratificante ouvir dois grandes talentos em harmonia tão perfeita, sem espaço para qualquer sobreposição de um ao outro.
nténor é interpretado pelo baixo Laurent Naouri. O personagem tem várias passagens de orquestra forte e ritmo bem marcado, e a voz firme de Naouri garante belos momentos na música, com a imposição necessária para dar ao herói da ópera um adversário que, se não está a sua altura, é, ao menos, confiante e seguro de si próprio. A bela ária “Monstre affreux, monstre redoutable” (ato IV, cena IV), resume bem o caráter do personagem e a competência de seu intérprete. Nesta ária, vemos o guerreiro Anténor pronto para ir à batalha contra o monstro marinho, no entanto, sentindo as dores de seu amor, perguntando-se se não seria melhor que o monstro o matasse; logo, temos um contraste de sentimentos, o amor e o belicoso, no entanto, o contraste da ária é apresentado com a mesma firmeza por Naouri, o que dá personalidade a Anténor através das diferenças de interpretação exigidas pela música.
e o papel de Iphise não é dotado de belas passagens musicais, o mesmo não acontece com Vénus, que acaba merecendo destaque apesar de suas árias serem bastante curtas. E felizmente, para esse papel, a ópera conta com a ótima Mireille Delunsch, que interpreta a deusa com leveza e brilho notáveis nas árias “Brisez vos fers” e “Troubles cruels” (prólogo, cena I), e na arieta “Pour la fête où l'on vous appelle” (ato V, cena III). Russel Smythe interpreta o rei Teucer. Apesar de ser um papel menos presente, o barítono tem bom momento para fazer sua voz aparecer, ao cantar junto de Naouri, no bonito dueto “Mânes plaintifs, tristes victimes” (ato I, cena III). Jean-Phillipe Courtis, no papel do mago Isménor, em nada compromete a gravação nos poucos momentos em que aparece. A ópera ainda conta Magdalena Kozená em pequenas aparições, interpretando personagens menores.
mais constante beleza musical da ópera cabe ao coro, e é incrível o diferencial que ela pode fazer ao se analisar Dardanus de um ponto de vista geral. O coro “Par tes bienfaits, signale ta puissance” (prólogo, cena II) é extremamente belo e chamativo devido a maneira como Rameau movimenta as vozes. Os belicosos coros “Guerriers, suivez l’Amour” e “Mars bellone, guidez nos/leurs coups”, não só são belas passagens corais, como também dois dos mais belos momentos de toda ópera. Sinceramente, não vale a pena continuar a listar os belos coros dessa ópera, pois praticamente todos deveriam receber atenção especial, mesmo que se tenha a pretensão de escolher apenas “os melhores”.
ardanus definitivamente não é a melhor ópera de Rameau, e, talvez, a afirmação de que a obra se trata de um conjunto de highlights (grande parte da culpa por causa da falta de constância devida ao libreto) acabe sendo pertinente. No entanto, é inegável que a regência impecável de Minkowski faz a ópera ser um grande atrativo, uma vez que é dotada de belíssima orquestração (algo inerente a Rameau) e de belíssimas passagens puramente orquestrais, como a própria abertura e a chacona que fecha a obra. Uma ópera de Rameau com o belo trabalho de Minkowski e a reunião de um excelente elenco, faz essa gravação ser essencial não apenas aos ramistas, como também para qualquer amante da música barroca.




Sunday, October 15, 2006

Handel: Rinaldo, HWV 7a

Georg Friedrich Handel (1685-1759)
Rinaldo, opera seria in tre atti

Rinaldo: Vivica Genaux, mezzo-soprano
Almirena: Miah Persson, soprano
Armida: Inga Kalna, soprano
Argante: James Rutherford, baixo
Goffredo: Lawrence Zazzo, contra-tenor
Eustazio: Christophe Dumaux, contra-tenor
Mago cristiano: Dominique Visse, contra-tenor
Freiburger Barockorchester
René Jacobs

HMC901796.98 - Harmonia Mundi


inaldo, escrita em 1711, foi a primeira ópera de Handel composta para Londres, tendo sua estréia no dia 24 de março do mesmo ano, no Queen’s Theatre, Haymarket. Possui libreto de Giacomo Rossi e Aaron Hill sobre o poema épico Gerusalemme Liberata (Jerusalém Libertada) de Torquato Tasso (1544-1595). Handel reformulou sensivelmente Rinaldo, com uma nova versão de 1731, reescrevendo grande parte do papel de Almirena, atenuando exuberâncias e preterindo personagens de menor importância, além de modificar o fim da ópera, dando um novo destino a Argante e Armida. A gravação em questão utiliza a versão de 1711.
história se passa durante a primeira Cruzada, durante o cerco do exército cristão, liderado por Goffredo, à cidade Jerusalém, sob domínio muçulmano. Goffredo promete ao herói Rinaldo a mão de sua filha Almirena, assim que a cidade for tomada. Armida, rainha de Damasco, amante de Argante, rei de Jerusalém, tem para si a revelação de espíritos que a vitória do exército invasor dependerá da participação de Rinaldo na campanha, o que dá início a seu esforço para retirar o cavaleiro cristão dos campos de batalha. Para isso, ela sequestra Almirena, fator sobre o qual se desenrolará a trama.
ssim como Aaron Hill, que apresentou exóticos efeitos de palco para Rinaldo, como ao utilizar uma “máquina voadora”, e excentricidade durante a apresentação ao soltar pássaros sobre a platéia, René Jacobs insere curiosos elementos representativos nesta gravação. Apesar de serem desnecessários, uma vez que o libreto dá a possibilidade de visualização através de descrições em cenas específicas, tais elementos contribuem para uma maior imersão na realidade da obra, tornando-a mais presente e vívida. No começo da ária “Augelletti”, de Almirena, há o silvo de um pássaro; durante o último recitativo do segundo ato, entre Armida e Argante, há momentos de tensão que, no palco, seriam representados por longas pausas, para isso Jacobs insere um estranho som, grave, com o intuito de representar o “silêncio”, que não seria conveniente numa gravação de estúdio.
ené Jacobs utiliza um baixo contínuo um tanto quanto adornado ao adicionar um órgão de câmara e uma harpa à formação usual composta pelo cravo, violoncelo e alaúde. Esta formação era perfeitamente possível de ser realizada na época de Rinaldo, mas devido ao alto custo, daquela época, de reunir castrato’s e prima donnas, essa rica constituição de baixo contínuo era uma exceção. Enquanto a harpa no século XVIII era uma opção de exotismo ou de caráter celestial dentro da formação, Jacobs adota o órgão, que no contínuo deve ser tocado com rigorosa discrição, entendendo-o como indispensável nessa ópera de temática religiosa cristã.
responsabilidade do papel-título, personagem que canta momentos de tristeza, vingança e ímpeto guerreiro, ficou para Vivica Genaux. Um papel que é, em si, um turbilhão de sentimentos, acaba por exigir uma voz bastante versátil, e, apesar da técnica incontestável e da competentíssima interpretação da mezzo-soprano americana, sua voz nem sempre se adapta perfeitamente ao contexto de determinadas árias, fazendo sua participação ser irregular. É necessário frisar que o termo “irregular” nessa gravação de Rinaldo está longe de indicar alternâncias abruptas entre o bom e o desleixado, mas sim difere grandes momentos de trechos nem tão inspirados. Genaux não consegue brilho para acompanhar o furioso toque da orquestra nas árias heróicas, como em “Or la tromba” (Ato 3, Cena 9), momento belicoso do herói cristão, em que Rinaldo canta sua sede por glória e sua paixão, apesar de ótima dinâmica. Mesma situação que ocorre na ária “Venti, turbini” (Ato 1, Cena 9), quando Rinaldo clama por forças para sua vingança. A cantora não consegue inspirar o mais valoroso guerreiro de todo um exército e trunfo para a vitória, talvez porque sua voz possa ser classificada como um pouco nasalada, o que a faz se tornar mais branda e doce. Se isso prejudica de um lado, nos momentos de ternura do personagem torna-se um fator relevante. A ária “Cara sposa” (Ato 1, Cena 7) cabe perfeitamente na voz de Genaux, que mostra, com doçura e perfeição, um herói angustiado pela falta de sua amada. Definitivamente este é um dos grandes momentos da ópera, e a cantora faz ser um dos grandes momentos da gravação. Pode-se dizer que Genaux mantém-se competente durante toda a música e consegue ser sublime em alguns momentos, estes não raros, mas em minoria.
soprano Miah Persson fica com o papel de Almirena, amada de Rinaldo. A cantora faz um papel de alto nível durante toda a ópera, mas consegue roubar a cena em duas árias específicas, que, ao ouvir, pode nos fazer pensar se ela não é a grande estrela do elenco. Na ária “Combatti da forte” (Ato 1, Cena 1), Persson nos apresenta uma excelente interpretação, com total controle sobre sua voz, executando dinâmicas com exímia precisão, fazendo um casamento perfeito com a orquestra, no entanto sempre se sobrepondo com elegância. Na famosa ária “Lascia ch’io pianga” (Ato 2, Cena 4) ouvimos uma Almirena comovente, que expressa a dor de seu momento. Um momento extremamente inspirado para Miah Persson e que nos inspira igualmente, ao emprestar sua belíssima voz a essa belíssima ária.
nga Kalna, soprano, interpreta Armida. Podemos dizer que, se Rinaldo quisesse uma esposa que cantasse bem para ele todas as manhãs, ele estaria muito bem servido, independentemente de ser Almirena ou Armida. Com a ária “Ah, crudel” (Ato 2, Cena 4) Kalna consegue que seja nutrido um sentimento de piedade pela antagonista, ao empenhar sua bela voz em uma das mais belas e comoventes árias da ópera. Em “Vo’ far guerra” (Ato 2, Cena 10) Inga, com grande competência, aflora os maus sentimentos de Armida, assim como torna visível uma Armida obscura (a personagem utiliza da magia para cumprir seus objetivos), num belo trecho em que dosa sua voz com perfeita dinâmica ao contrastar com cordas em pizzicato.
ma grande surpresa é James Rutherford, que vive Argante, um baixo dotado de bela voz que dá definitiva autoridade ao rei de Jerusalém. Sua ária “Vieni, o cara” (Ato 1, Cena 4) é profética , grandiosa e profunda, e Rutherford consegue explorar todos esses elementos com suprema maestria. No dueto com Inga Kalna, “Al trionfo del nostro furore” (Ato 3, Cena 6), sua voz aparece de maneira colorida ao contrastar com a da intérprete de Armida, e na ária “Basta che sol tu chieda” (Ato 2, Cena 4), uma das mais belas da ópera, ele garante sua coroa de louros.
contra-tenor Lawrence Zazzo, Goffredo, mantém o alto nível da ópera interpretando o comandante do exército cristão. A ele cabe o dever de interpretar 4 árias durante o desenrolar da obra. Merecem destaque “Sovra balze scoscese” (Ato 1, Cena 1) de belo colorido orquestral, ao utilizar ornamentação sugerida por William Babell (músico, cravista, que trabalhou com Handel em algumas de suas óperas), e “Sorge nel petto” (Ato 3, Cena 3), uma suave e inocente ária de contentamento. Christophe Dumaux interpreta Eustazio com diligência e não compromete em nada essa gravação de gala, e ainda nos premia com duas belas árias. Dominique Visse fecha o time, interpretando o mago cristão com a competência necessária para não manchar em nada essa Rinaldo de Jacobs.
orquestra Freiburger Barockorchester, que utiliza instrumentos autênticos, aceitou o desafio de interpretar uma das óperas de Handel com mais rica orquestração, e o colorido baixo-contínuo de Jacobs, e triunfou com pompas. Jacobs dá uma regência concisa, dosando bem a dinâmica de modo a mostrar nitidamente a ornamentação que pretende, nunca ofuscando os cantores. Sua versão é mais lenta do que quanto uma interpretação histórica exige, mas isso não compromete o conjunto e nem tira a coroa que a gravação merece. Enfim, um Rinaldo mais do que recomendado, sendo garantia de puro deleite!